ATO | indica -> Roadrunner
- Ato.Psicanalise
- 27 de jun. de 2024
- 4 min de leitura
por Isabella Martino

No dia 8 de junho de 2018 o mundo recebeu a notícia do suicídio do renomado escritor, chef de cozinha e apresentador de TV, Anthony Bourdain. A incredulidade era justamente ter que lidar com o fato inconcebível deste homem que tinha o suposto emprego dos sonhos, inteligentíssimo e com um charme de dar inveja, ter tirado a própria vida. Se isso ocorre com uma pessoa que - supostamente - tem tudo, que tipo de sentido tem a nossa mera, pacata, cotidiana e nada glamurosa existência?
A curiosidade ao redor do suicídio reflete a linha bamba que caminhamos no esforço de atribuir algum sentido a essa eterna luta de acordar todas as manhãs e duramente tentar fazer algo com o nosso tempo e, de preferência, algo que também possibilite pagar os nossos boletos. Existir é entrar direto na corda bamba de Philippe Petit estendida entre as torres do absurdo, a quatrocentos metros de altura, sem nenhum dispositivo de segurança, nem mesmo um cinto para nos assegurar algum controle, o que é o mesmo de ter que lidar com a nossa realidade. Qualquer movimento mais sutil e nos defrontamos com o risco escancarado de testemunhar o esvaziamento de algum senso de pertencimento.
Talvez foi isso que mobilizou o diretor Morgan Neville a se lançar em uma jornada em busca de conhecer esse anti-herói narcísico, personagem humano, complexo e fascinante que era Bourdain. Nele vemos a luta desde a infância contra uma raiva não elaborada. Bourdain parece não entender os motivos desse afeto tão violento que o habita desde cedo. Em uma entrevista para o The Guardian ele mesmo se apresentou como uma “alma infeliz”. Também era muito aberto a compartilhar a sua experiência na luta contra o uso de drogas que o viciou por mais de 20 anos.
Em um episódio de “Parts Unknown”, filmado na Argentina em 2016, ele documenta uma conversa com uma psicanalista enquanto é filmado em um divã e inicia a sua sessão dizendo que não fazia análise desde a adolescência, quando os pais o obrigaram. Após um breve silêncio ele faz a declaração de abertura: “é exaustivo”. Depois revela a causalidade: “eu costumo ter uma personalidade meio maníaca, tudo vai muito bem ou nada vai bem. Essas mudanças podem acontecer a qualquer momento, é aleatório. Às vezes tudo está caminhando bem, mas, do nada, uma coisinha acontece e eu me pego pensando cada vez mais - e aqui ele gagueja - eu tenho frequentemente fantasias passageiras sobre machucar os outros ou a mim mesmo, como se eu quisesse matar, enforcar, ou quebrar braços. Eu penso muito nisso.” Em outro episódio ele admite que se sente muito sozinho: “eu vivo da comunicação, mas eu sou terrível em me comunicar com as pessoas que eu realmente me importo, eu me sinto estranho e isolado”.
Bourdain parece não encontrar um motivo na realidade para tamanho sofrimento, este apenas existe. Há um desconhecimento, um não saber sobre esse sofrimento, a raiva e a tristeza parecem ser tentativas de descargas que são produzidas diante dessa angústia não simbolizada, aquilo que Bourdain, embora fosse um exímio escritor, não conseguia acessar e descrever com palavras. Em uma entrevista para a Revista People, quatro meses antes da sua morte, ele confessa: houve momentos na minha vida, digo honestamente, que eu pensei que já vivi o bastante, me perguntei o porquê de não fazer essa coisa estúpida e egoísta como saltar de um penhasco em águas de profundidade indeterminada…”.
Aquele que se "en-caminha" para suicídio assinala isto que está para além do que pode ser dito por palavras. É como se o sofrimento houvesse atingido um auge e a ação surgisse como um basta. Apesar da ação remeter à morte, muitas vezes é mais um desgaste para com a vida. Há sempre o indicativo de um sofrimento insuportável e chega-se a conclusão que a própria morte será a melhor solução. O sofrimento não é questionado, é resolvido. Lacan reconhece no suicídio uma singularidade, "é precisamente a partir do momento em que o sujeito morre que ele se torna, para os outros, um signo eterno, e os suicidas mais que os outros."
No documentário há um esforço em dar contornos para a causalidade do suicídio. E isso é feito de uma forma antiética, a partir dos relatos e escolhas de takes, que dão a entender que o gatilho foi uma suposta traição de sua namorada na época: Asia Argento. Isso só transforma uma história de vida complexa e singular em uma trama fútil novelesca. O diretor erra ao deixar de fora a própria Asia, não a convidando a participar do projeto, recorrente clichê que usa a imagem de uma mulher forte, instigante, bonita e inteligente em uma Medusa perigosa e sedutora, pronta para arruinar a vida de mais um marmanjo.
O fato é que qualquer um que tenta desvendar a causa de um suicídio está tapando o sol com a peneira. Não existe uma causa para o suicídio. O que se chama de “causa” é, geralmente, o elo final dessa cadeia. A suposta “causa” remete a algo da ordem do desconhecido, aquilo que é desprovido de palavras, e é muita arrogância sequer considerar que isso poderia ser desvendado por alguma outra pessoa senão o suicida. Fora essas derrapadas do final, o documentário é uma oportunidade para conhecermos um pouco mais a vida interessantíssima de Anthony Bourdain.
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